Na próxima quarta-feira, 15 de Fevereiro, começará a nova temporada das " Noites de Insónia".
"Memórias do Cárcere" será a obra a ser lida e debatida nas 9 sessões que se seguirão.
Quem vir, em obra de tão pouca monta, o empavesado intróito dum discurso preliminar, entra logo a sorrir do desvanecimento com que um fútil romancista vem com a sua obra arreada de composturas, que só concertam ao justo em escritos de ciência, de filosofia, de história, e algumas vezes nos reportórios.
Acudo eu logo, por minha modéstia e bom juízo, alegando que discurso preliminar, neste caso, quer dizer que o autor, antes de folhear os seus apontamentos do cárcere, há-de entreter-se algum pouco espaço com recordações, nem mais saudosas, nem gratas, que as dos ferros, mas benquistas do espírito e da gratidão que as reservou para esta hora. De gratidão, digo, e depois virá o porquê.
Em uma risonha tarde de Maio de 1860 chilreavam as aves o seu hino crepuscular e de despedida ao formoso sol daquele dia. Os coretos dos alados cantores eram as amoreiras e acácias floridas da Praça de D. Pedro, as quais vaporavam de suas urnas de branco e rosa aromas suavíssimos. Por entre o arvoredo se andavam passeando e deliciando os amantes da natureza; e ela, deles namorada, parecia guardar-lhes para a noite os seus enfeites de mais primor, como fina amante, que mais se poetiza e doura, e enternece ao pálido luzir das estrelas.
E estava eu contemplativo e devaneando nisto, quando a carta de um amigo me avisou de uma sentença que me privava de contemplar as acácias, e aspirar os aromas, e escutar arroubados os hinos das aves. Ao aviso acrescia o conselho da imediata saída do Porto, antes que os aguazis me levassem a sitio onde os perfumes das árvores em flor da Praça de D. Pedro deviam chegar muito degenerados.
Pareceu-me razoável este argumento de perfumes, e aceitei o alvitre do desterro, desterro voluntário para onde quer que a superabundância de getas me desse azo a julgar-me em parelhas com Ovídio, comparação em que tanto Ovídio como as nossas províncias do norte se deviam magoar por igual, se o autor não estivesse gracejando.
Às nove horas da noite desse dia, aí perto da igreja do Bonfim, senti a consolação das lágrimas, não minhas, lágrimas estranhas, que são, em alma adusta, como a nuvem que o céu abriu em vertentes sobre a terra rescaldada. Este chorar consolador era de homem que vai a meio caminho da vida com a mimosa sensibilidade dos quinze anos. Era Custódio José Vieira, o fervente tribuno, o cavalheiro pundonoroso até à bravura, o jornalista virulento, o advogado incendido em raptos de energia.
Quem dirá que chora Custódio José Vieira? Quantas vezes eu tenho pedido aos seus maus julgadores que o reputem menos sanhudo que o leão de Numídia e o tigre de Benguela! (1) Os que o viram tribuno, nas praças e na imprensa, dizem que ele seria capaz de devorar uma família real inteira como quem come um pastelão de pombos. Os que o ouviram nos tribunais, pedindo aos próceres da república que se lavassem de nódoas indecorosas à sua memória, aventaram nele o sanguinário orador romano que pedia a cabeça de Catilina. Os que o viram ir a longes terras pedir desafronta, se porventura dois talentos podem sair-se com afrontamento digno de reparação, cuidaram que o timbroso moço queria ensopar as mãos em sangue, em formar no seu gabinete pavoroso uma galeria de crânios.
Ora vejam que mal o julgava o mundo! Custódio José Vieira se visse um rei em perigo de cair nas garras de algum Cromwell, o primeiro em que ele batia era no Cromwell. Se Custódio José Vieira visse a desonra dum estadista – imerecida desonra – promulgada pelo triunfo caviloso de sua eloquência, o mais atormentado pela calúnia não seria o réu. O acusador, cedo ou tarde convencido de sua iniquidade, iria buscar o holocausto de alheios vícios para lhe dizer no pináculo das honras, ou no raso da sepultura: «Na minha voz repercutiu a voz do mundo, por isso te acusei. Podias lançar de ti o estigma. Não quiseste; sabias que o segredo revelado da tua comiseração te restauraria a honra, acrescentada em outras que se não alcançam por trilhas vulgares. Enquanto os teus mais grados malsins de inventados crimes te gemem elegias ao pé do esquife, sem rasgarem as páginas em que te marearam a velhice, venho eu aqui dizer-te, ó grande que ora és nada, que iniquamente foste infamado, e eu, na torrente dos injustos, injusto fui contigo. Aqui deixo em pó, ao lado de tuas cinzas, a página que dei para o falso apreço da tua vida pública e íntima. Se deste acto me converterem a dignidade em peçonha, tragá-la-ei, para que assim pela expiação se vá remindo a consciência inquieta.»
(1)
Em Benguela não há tigres; em Bengala, sim. Como a 3ª edição, que serviu de original, é revista pelo autor, mantemos Benguela, embora convencidos de se tratar de um lapso. (Nota do revisor.)
(...)
Era o primeiro dia de Outubro de 1860.
O céu estava azul como nos meses estivos. O Sol parecia vestido das suas galas de Abril, a bafagem do sul vinha ainda aquecida das últimas lufadas do Outono. Que formoso céu e sol, que suave respirar eu sentia, quando apeei da carruagem à porta da
cadeia!