Prefácio:
A Domingos Peres das Eiras com umas Violetas
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- Precisas de ler Camilo - responderam-me. Eu calei-me: não era forte em Camilo. Pensava no espírito tão genuinamente popular desta terra, a que se encontrava vinculada a mais alta das virtudes, a sua fronderie liberalista, que conquistou o privilégio de banir a nobreza dos seus muros e não permitiu ao Tribunal do Santo Ofício celebrar aqui mais do que um só auto-de-fé. Que me importava a mim, naquele momento, o que Camilo dissera do Porto? Poderia alguém, Camilo ou quem quer que fosse, negar aquela beleza desgrenhada e áspera que tinha diante dos meus olhos? Só mesmo quem fosse cego de nascença...
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Quanto a Camilo só o li - e mal, é certo! - muitos anos depois: quando voltei ao Porto para ficar. Quem o nega? Camilo viu do Porto a outra face, a do «burgo antigo com a sua dinastia de comerciantes», que o Eça também lhe descobre, sem contudo lhe negar o que Camilo lhe negou - a honradez: «O bom portuense se quiser ter foros de cidadão terá de provar que o bisavô veio para a cidade com uma broa e meio presunto no saco, escarranchado sobre dois costais de castanholas; que o avô teve balcão de fazendas brancas e foi irmão do Santíssimo, irmão benemérito da Misericórdia, e vinte anos a fio vestiu balandrau para pegar ao andor de Nossa Senhora. Item, que o pai era, sem vergonha do mundo, negociante de quatro portas, afora os postigos por onde passava o contrabando; que sua mãe fora uma gorda e boa mulher que remendava, passajava e sabia mesmo deitar uns fundilhos nas calças do marçano e nunca na vida tivera pacta com letra redonda.» Era isto o Porto , na juventude de Camilo? Se pensarmos no pendor caricatural e polémico do autor do «Amor de Perdição», nas circunstâncias em que tais palavras, e outras, e outras, foram escritas (poucas vezes, como aqui, o verso de Pessoa «Compra-se a glória com desgraça» terá tido tanta ressonância), poder-se-á objectar que a imagem está um tanto ou quanto desfocada; ou se preferem: não seria o provincianismo apelintrado, que se despeja inteiro na cidade da Virgem, afinal, característica de todo o país? Do país..., do país..., que pensava Camilo? Oiçam-no! «Quando se fará ao menos inodora esta cloaca de Portugal?» Azedo, agastado, doente, «escouceado» numa terra que lhe não perdoava o sarcasmo, como a Garret não perdoou a ironia, Camilo ainda pôde, contudo, escrever a um amigo: «Estou triste. Aproxima-se a hora de deixar para sempre esta terra, onde a par de muitos dissabores, experimental alegrias instantâneas. Não é da gente que tenho saudades. É de não sei o quê...» São realmente muito tortos os caminhos do amor...
Mais do que sarcasmo de Camilo, que disfarçava, ao fim e ao cabo, uma ternura por esta gente metida nos seus «tamancos estóicos» (se assim não fora, como explicar que ele lhe tenha mordido e remordido o coração?), surpreende o desprezo de António Nobre,...
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A grande trindade poética que lavra, nesta pedra escura, o perfil seguro do Porto - Fernão Lopes, Garret e Camilo - leva fatalmente à cidade uma pessoal visão do mundo, o seu génio próprio. O Porto de Fernão Lopes é quase legendário: heróico e honrado; o de Camilo, grotesco e dramático; o de Garret, irónico, pitoresco e sentimental. São três tempos (em duplo sentido: histórico e musical) do seu carácter que, embora esquematicamente enunciados, nos permitem algumas aproximações. A cidade viril de Fernão Lopes é ainda a de Herculano, Ramalho, Jaime Cortesão e Miguel Torga; Raul Brandão, Pascoaes e Agustina estão, de algum modo, na continuação do pessimismo de Camilo; de Garret parte, dessorada, perdido por completo o seu impenitente humor, toda uma toada que de Júlio Dinis e António Nobre vem desaguar em tanta loa tacanhamente regionalista e deprimente. Isto para falarmos apenas de quem mais se debruçou na alma destas pedras, bem pouco transparente, como se vê.
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«Para a minha alma eu queria uma torre como esta, assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.»
S. Lázaro, 1967
Eugénio de Andrade
Nota: Texto retirado do livro: "Daqui houve nome Portugal" - Antologia de verso e prosa sobre o Porto - Organizada e prefaciada por Eugénio de Andrade.
Bibliografia de Camilo Castelo Branco encontrada no livro:
«Obras Selectas - A Filha do Arcediago - Onde Está a Felicidade? - Ecos Humorísticos do Minho - Anos de Prosa.»
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