PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
As Memórias do Cárcere foram escritas na convalescença duma grande enfermidade moral. Conheci quanto pode o homem sobre si próprio, em quarenta dias de laboriosa provação, que tantos empreguei em ordenar estes quadros, que constituíram dois pequenos volumes na primeira publicação. Consistiu a minha luta em fingir uma estóica serenidade, que, tão ao revés da minha índole, vinguei e dissimulei. Assim mesmo haviam relanços no livro em que o propósito não lograra sopesar o espírito. Esses relanços desagradam-me agora, e hei-de cancelá-los espontaneamente. Ainda bem que de mui pouco me incomoda o arrependimento. Se me disserem que outro homem poderia dar mais louvável exemplo de cordura e mansidão, responderei que exemplo mais louvável só poderia dá-lo quem se calasse, em analogia de circunstâncias. Isso, a tê-lo eu feito, me seria agora motivo de muito orgulho – o orgulho de quem se alevanta superior às dores e às afrontas.
Este livro esteve a naufragar, quando eu cuidava que ele ia velejando em mar de leite. O título dera esperanças, que o texto desmentira. Afizera-se o venerando público à ideia de que as Memórias do Cárcere eram uma diatribe eriçada de injúrias, sarcasmos e glosas ao escândalo, que desgraçadamente as dispensava, tão à luz do sol se desnudara arrastado por praças e tribunais. Saiu o livro, mentindo às esperanças de muita gente, que o esperava à feição de sua vontade para ter o prazer de me condenar. O resultado foi condenarem-me, porque raras vezes estas páginas se enlamearam no assunto lastimável que as sugeriu.
Para contrafazer ao desconceito que algumas pessoas votaram ao livro, saiu-me favorável o parecer de outras, que mostraram desejo de ver esta obra expurgada de algumas manchas que lhe afeiam a continente placidez com que discorre quase sempre arredada da minha questão toda pessoal, e por isso mesmo odiosíssima.
Desgostos mais graves me sobrevieram. Inimigos mais estúpidos que maus quiseram ver, no modo como eu falei do meu prestante e obsequiador amigo José Cardoso Vieira de Castro, uma intencional e pouco rebuçada desconsideração. Doeu-me deveras isto, mormente porque Vieira de Castro, de feito, se quis ver desconsiderado nesses períodos, que vão agora integralmente reproduzidos. A calúnia de gentio, empenhado em desatar o laços de muita estima e obrigação que me ligam àquele cavalheiro, enojava-me; porém, o assentimento do moço ilustrado às aleivosias dos lorpas, doeu-me no mais sensível da minha alma. Se eu agora retocasse alguma das palavras referidas ao meu amigo, quem maior testemunho dava da sua miséria seria eu. Os alarves batiam as palmas, e Vieira de Castro pasmaria!
A imprensa periódica foi benigna com este livro. Nenhuma crítica, ao menos das que eu li, me infamou de escandaloso o escrito. Grande número dos censores notaram e louvaram a inofensiva contextura destas historietas, que, em geral, miravam a fazerem-se ler alegremente. Se o consegui, esta suprema violência, que eu fiz ao meu espírito, devera ser tida em conta, não de habilidade, mas de muitíssima força de alma.
CAMILO CASTELO BRANCO
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