Camilo Castelo Branco
«Ao visconde de Ougueta
Sejamos amigos como foram nossos pais
e deixemos a nossos filhos o exemplo que recebemos.»
I
Foi ha treze annos, em uma tarde calmosa de agosto, neste mesmo escriptorio, e n'aquelle canapé, que o cego de Landim esteve sentado. São inolvidaveis as feições do homem. Tinha cincoenta e cinco annos, rijos como raros homens de vida contrariada se gabam aos quarenta. Resumbrava-lhe no semblante anafado a paz e a saude da consciencia. Tinha as espaduas largas: cabia-lhe muito ar no peito; coração e pulmões aviventavam-se na amplidão da pleura elastica. Envidraçava as pupilas alvacentas com vidros esfumados, postos em grandes aros de ouro. Trajava de preto, a sobrecasaca abotoada, a calça justa, e a bota lustrosa; apertava na mão esquerda as luvas amarrotadas e apoiava a direita no castão de prata de uma bengala.
Eu não o conhecia quando me deram um bilhete de visita com este nome - ANTONIO JOSÉ PINTO MONTEIRO.
Em S. Miguel de Seide, uma visita, que se fizesse preceder do seu cartão, era a primeira.
- Quem é? - perguntei ao creado.
- É o cego de Landim.
- E esse cego quem é?
O interrogado, para me esclarecer superabundantemente, respondeu que era o CEGO, como se se tratasse de um cego por excellencia e de historica publicidade: Tobias, Homero, Milton, etc.
Mandei que o conduzissem ao meu escriptorio. Ouvi passos que subiam rapidos e seguros uns doze degráos: e, no patamar da escada, esta pergunta muito sacudida:
- Á esquerda ou á direita?
- Á esquerda - respondi, e fui recebel-o á entrada.
Estendeu-me firme dois dedos, e desfechou-me logo em estylo de presidente de camara municipal sertaneja ás pessoas reaes, uma allocução á minha immortalidade de romancista, lamentando que eu ainda não tivesse em Portugal uma estatua... equestre; parece-me que elle não disse estatua equestre. Achei-lhe rasão. Eu tambem já tinha lamentado aquillo mesmo; porém, cumpria-me regeitar modestamente a estatua, como o duque de Coimbra, agradecendo a virginal lembrança do sr. Pinto Monteiro.
- Tenho ouvido ler os seus livros immortaes - disse elle - Não os leio porque sou cego.
- Completamente? - perguntei, parecendo-me incompossivel a cegueira absoluta com a segurança da sua agilidade nos movimentos.
- Completamente cego, ha trinta e trez annos. Na flôr da idade, quando saudava as flôres da minha vigesima segunda primavera, ceguei.
- E resignou-se...
- Se me resignei!... Morri de dôr, e resuscitei em trevas eternas... O sol, nunca mais!
Pungia-me a compaixão. Disse-lhe consolações banaes; citei os mais luminosos cegos antigos e recentes. Nomeei-lhe o principe da lyra peninsular, Castilho, e elle atalhou:
- Castilho tem o genio que vê as coisas da terra e do ceu. Eu tenho as duas cegueiras do corpo e da alma.
Achei-o eloquentemente sobrio e áttico; figurou-se-me até litterato dos bons. Lembrei-me se elle vinha convidar-me para fundarmos um jornal em Landim, ou se viria pedir-me para o propôr socio correspondente da academia real das sciencias.
Discretiamos de parte a parte em variados assumptos, até que elle explicou as suas pretenções. Tinha um litigio pendente sobre a posse disputada de umas azenhas que lhe haviam custado tres contos de réis, e pedia a minha valiosa preponderancia afim de que os juizes de segunda instancia lhe fizessem justiça inteira.
Observei-lhe que a minha influencia poderia ser-lhe necessaria, se a justiça estivesse da parte do seu contendor; por quanto, quem não tem justiça é que pede.
- Apoiado! - interrompeu elle - A razão diz isso; mas acontece que o meu contendor pede porque não tem justiça; ora não vão os juizes cuidar que eu tenho mais confiança na lei do que n'elles...
Pareceu me sagaz, argucioso e um pouco germanico o cego.
Deu-me quatro memoriaes, accendeu o terceiro charuto, e ergueu-se. Acompanhei-o até ao portão, e vi-o cavalgar com garbo quasi marialva uma vistosa egua, passar as redeas falsas pelas outras com destreza, esporear e partir sósinho.
***
Ora, o cego perdeu a demanda das asenhas por que as asenhas não eram perfeitamente d'elle, e eu não podia pedir aos desembargadores que as tirassem ao dono e m'as dessem a mim para eu as dar ao cego.
Nunca mais o vi. Retirou-me a admiração e mais a estatua. E, cinco annos depois, morreu.
A historia dos homens descommunaes deve começar a escrever-se á lampada do seu tumulo. Á luz da vida tudo são miragens nas acções dos heroes e estrabismos na contemplação dos panegyristas. É tempo de bosquejar o perfil d'este homem esquecido, e quem quizer que o tire a vulto em marmore mais presistente. Pretendo desmentir os aleivosos que reputam Portugal um alfôbre de lyricos, romancistas salobros de amoríos de aldeia, porque não temos personagens bastantemente succulentos de quem se espremam romances em 4 volumes.
II
Nascera em Landim em 11 de dezembro de 1808.
1808! Os biographos portuguezes, se escrevem de pessoa nascida n'aquella data ou por perto, relatam-nos derramadamente a revolução franceza a começar em Luiz XVI, exhibem a guerra peninsular, e concluem o curso de historia moderna ligando fatidicamente á evolução social o nascimento d'aquelle sujeito.
No anno 1808, uma das muitas pessoas que nasceram sem pesarem um escropulo, pelo pezo velho, na balança dos lusos destinos, foi aquelle Antonio José Pinto Monteiro.
Seu pai barbeava em Landim com ferocidade impune. A espada de Affonso Henriques e as navalhas d'elle tem tradições sanguinarias. Ainda hoje, transcorridos setenta annos, os netos dos seus freguezes parece que herdaram a sensação dos gilvazes dos avós. Em Landim falla-se d'elle como de Torrequemada em Valhadolid. Aquelle barbeiro é uma lenda como a de Gerião, assassinado por Hercules, e a do monstro de Rhodes cantado por Schiller.
Antonio, o primogenito d'este esfolador, estudou primeiras lettras com rara esperteza. Aos onze annos, era prodigio em taboada e bastardinho. Aos doze, imitava firmas com perfeição despremiada, e vingava-se do menospreço em que o estado o esquecia, estabelecendo correspondencias entre pessoas que não se correspondiam, mediante as quaes, uma vez por outra, agenciava alguns pintos.
Como talentos taes não se atabafam muito tempo debaixo do alqueire, o rapaz soffreu algumas contuzões. Um monge benedictino de S. Tyrso compadeceu-se do moço, em tão verdes annos perdido, á conta da sua habilidade funesta: pagou-lhe passagem para o Brazil, porque sabia que os ares de Sancta Cruz são como os do Eden para refazer innocentes.
Empregou-se como caixeiro no Rio. Foi estimado nos primeiros trez annos. Estremava-se dos seus broncos patricios no dom da palavra, nas lerias aos freguezes, nos ardis licitos do balcão, nas ladroices consuetudinarias que affirmam a vocação pronunciada, as quaes, no calão da optica mercantil, se chamam: «lume no olho.» Nas horas feriadas, lia applicadamente e tangia violão. A sua especialidade litteraria era a eloquencia tribunicia. Estudara francez para ler Mirabeau e Danton. Enchera-se d'elles, e ensaiava republicas federalistas com os caixeiros, pedindo cabeças de reis a uns pobres parvajolas que suspiravam apenas por cabeças de gorazes.
Os patrões não farejaram um acabado Robespierre no caixeiro; mas, como desconhecessem a vantagem da apotheose dos girondinos em uma loja de molhados, expulsaram-no como republicano.
Pinto Monteiro intrommetteu-se na politica brazileira, iniciou-se na maçonaria em 1830, fez discursos vermelhos contra o imperador e escreveu clandestinamente. Esteve assim na fronteira do paiz promettido aos eternos Paturots. É indeterminavel o estadîo que elle ganharia, se um militar imperialista lhe não cortasse o rosto com um latego. Uma das tagantadas contundiu-lhe os olhos. Pinto Monteiro cegou.
(...)
CONCLUSÃO
No cemiterio de Landim está uma sepultura com este letreiro:
AQUI JAZ ANTONIO JOSÉ PINTO MONTEIRO
NASCEU A 11 DE DEZEMBRO DE 1808
FALLECEU A 1 DE DEZEMBRO DE 1868
TRIBUTO DE GRATIDÃO DE ETERNA SAUDADE
QUE LHE DEDICA SUA INCONSOLAVEL FILHA
GUILHERMINA
Anna das Neves ideara uma perspectiva de felicidades: viver os restantes annos em recatada pobreza, morrer mais desamparada que o irmão, e ser levada como quem remove um entulho ali para aquella sepultura onde se pulverisavam os ossos execrados do cego.
Estas felicidades não as gosa quem quer.
Um dia, a justiça, perseguindo Narcisa pelo roubo de uma coberta de fêlpo, soube que a Neves a mandara vender. A ordem de captura involveu-a como receptadora de roubos. Invadiram-lhe judicialmente a casa, e encontraram, para maior prova do crime, um açafate de maçãs camoezas, dois calondros e algumas batatas que Narcisa recolhera, de colheita aliás suspeitosa, nas lojas da casa da sua protectora. A irmã do cego foi capturada, e, sem fiança, encarcerada na lobrega enchovia de Famalicão. Dias depois davam-lhe a companhia de Narciza, que se entregara á prisão, arrojando a pistola, quando lhe disseram que a Neves estava preza. O juiz misericordioso condemnou-as a oito mezes de prisão, dado que os jurados as sobrecarregassem de crimes benemeritos de degredo perpetuo.
Cumprida a sentença, D. Anna das Neves Miquelina Monteiro vendeu a casa que o irmão comprára em nome d'ella. Com o producto d'essa venda transferiu-se, em 1872, ao Brazil, e levou comsigo Narcisa do Bravo. Parece que não tinha outros amores n'este mundo, e desejava expirar, como o irmão, nos braços d'ella.
E visto que não estamos dispostos a deixal-a morrer nos nossos braços, ó leitor, parece-me caridosa coisa que a não fulminemos com a nossa honrada raiva. Sou de opinião que sejamos inexoravelmente severos com os desgraçados e com as desgraçadas, quando elles e ellas repellirem a felicidade que lhes offerecermos.
Camilo Castelo Branco
S. Miguel de Seide - Julho de 1876
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