(...)
Pois apesar da incontestável autoridade do grande satírico português, é raro, raríssimo que homens do mesmo ofício se louvem ou se critiquem. Vai cada qual no seu caminho, e os outros que apreciem como lhes parecer. É certo que às vezes se encontram e se cortejam com benevolência. Tem acontecido, mas por acaso.
(...)A obra do Sr.Camilo Castelo Branco tem três partes, como revela o título. A primeira diz respeito ao coração de Silvestre da Silva, que não era dos piores. A segunda trata da cabeça do tal sujeito, que não seria de invejar. A terceira e última, é como o estômago, víscera infeliz desde a malfadada maçã do paraíso até às alicantinas gastronómicas das respeitáveis casas de pasto, que honram a pátria e o século.
(...)
Há dois capítulos nesta primeira parte, dos quais um se intitula A mulher que o mundo respeita, e o outro A mulher que o mundo despreza. Já se vê que o mundo respeita uma desaforadíssima criatura, e despreza uma infeliz, lançada por mão alheia no abismo da miséria. Tem-se visto.
O mundo respeita muito o dinheiro e a grandeza. Não lhes pergunta o sexo. Se acertam cair em homem, viva o homem, ainda que seja o mais descarado malandro. Se encarnam em mulher, viva a mulher, ainda que seja a mais deslavada marafona. Querem saber a causa? Perguntem-na ao mundo. O Sr. Camilo afiança a existência do facto, e eu ofereço-me para testemunha abonatória.
(...)
À cabeça do Sr. Silvestre Silva faltava principalmente juízo, e por isso, principiou em correspondente do Periódico dos Pobres do Porto, e acabou na cadeia por sentença do meretíssimo juiz da polícia correcional.
Pois vai-se meter com a vida do Sr. Anselmo Sanches, advogado mais desvergonhadamente honrado dos auditórios do norte! Que lhe importava ele a pureza de costumes do nosso querido doutor? Por isso malhou com os ossos na Relação, e foi muito bem feito.
Quantos Anselmos Sanches não há por esse mundo vivendo muito desforadamente com geral reputação de santinhos! E chovem-lhes as procurações no escritório, e em casa convites para jantar e para baile, à mistura com presentes ricos e recados das meninas nas cartas do pai!
(...)
Encantou-me a terceira parte do romance, não pelo desenlace filosófico, mas pela admirável fidelidade com que o Sr. Camilo Castelo Branco copiou da natureza as cenas e linguagem da casa do sargento-mor de Soutelo. Tomásia na cozinha, na eira, a coser, à mesa, na despedida, e na volta da igreja no dia do casamento, não tem rival em nenhum romance português que eu conheça.
(...)´
É muito difícil pintar bem os costumes portugueses. A primeira dificuldade está em conhecê-los. Cumpre ir estudá-los nas terras mais afastadas do sertão, onde o chá é remédio para dores de barriga...
(...)
O Sr. Camilo Castelo Branco é o nosso primeiro romancista e há-de ser por certo, se o quiser ser, um dos mais discretos prosadores portugueses. O voto não admite suspeição, porque é de homem do mesmo ofício.
24 de Outubro de 1862 - A. A. Teixeira de Vasconcelos
In Coração, Cabeça e Estômago - Camilo Castelo Branco